Sou do tempo em que crianças brincavam de guerra. Apenas brincavam, imitando o que viam naquela enxurrada de filmes vindos principalmente dos Estados Unidos, então em guerra contra o Vietnam. A guerra, vista assim de longe, na telinha, cercada de uma falsa aura de glória e coragem, passava a impressão de que era o ponto máximo a que um homem poderia chegar na vida.
Na adolescência pude ter contato com um senhor de certa idade, fugitivo de Angola, e que vivia num desses abrigos para idosos na capital mineira. Eram tempos de lutas pela libertação de Portugal. Eu morava quase ao lado da residência de um ex-combatente da segunda guerra mundial que, um dia, vendo-me passar pela frente de sua casa, como habitualmente fazia para ir trabalhar, insistiu para que eu lesse um certo fascículo do então popular Reader's Digest (Seleções), que trazia um longo trecho em português de Portugal, do diário de um sargento da Batalha de Waterloo, aquela que havia posto fim à carreira de Napoleão Bonaparte em 1815.
Assim que tive tempo, comecei a ler ainda meio sem vontade, mas sabia que ele gostaria de comentar o assunto depois. Foi assim o meu primeiro contato com a guerra verdadeira. A leitura do diário me pôs em contato com o momento vivido por aquele homem que descreveu o medo e a ansiedade que antecedia a batalha. Falava dos batalhões formados por milhares de soldados mais jovens e inexperientes, e da tremedeira ou diarreia que se espalhava por causa do medo do que estava por acontecer. Descreveu a batalha que teve um número imenso de mortos e feridos, e da necessidade de misturar veteranos com os novatos para estabilizar os pelotões. Falou de um oficial de cavalaria atingido em pleno peito por uma bala de canhão, e de outro que segurava as rédeas do cavalo com a boca por causa dos ferimentos nos dois braços. Citou a dificuldade das arremetidas da cavalaria por conta do número de mortos e das baionetas caídas no solo e que feriam as patas dos animais.
Com os anos aprendi que naqueles tempos as guerras aconteciam entre exércitos e não envolviam diretamente a população civil. Os campos de batalha eram escolhidos e lá se decidia entre soldados. Depois da segunda guerra mundial, as guerras já não escolhem claramente os alvos. Qualquer um, civil ou militar, é alvo potencial da artilharia, dos bombardeios e das rajadas de metralhadoras,, ... apesar de dizerem o contrário.
Hoje, estamos todos envolvidos nas guerras urbanas, alimentadas pelo narcotráfico, pelo tráfico de armas, pela fome, pelas neuroses, pela miséria moral e material, pela ineficiência do Estado em cumprir sua missão constitucional e pelo egoísmo de classe e de casta. Como dizem, saímos de casa candidatos a vítimas e voltamos como sobreviventes. A guerra não acontece mais lá, mas em toda parte.
- por Paulo Santos