por Paulo R. Santos
Sabemos que o calendário é uma convenção meramente humana para contar a passagem do tempo, ou para situar os acontecimentos de modo a torná-los conhecidos no tempo e no espaço, e recuperá-los de algum modo. Pode servir como referência de análises e reflexões para mudanças pessoais ou coletivas, a depender de como se toma consciência das implicações dos fatos em nossas vidas. Podemos ser mais ou menos infelizes, conforme as escolhas e decisões.
De um modo geral, a passagem do ano é meramente simbólica, sem efeitos práticos ou mudanças reais na vida pessoal ou coletiva. Nos acostumamos a viver um círculo vicioso – raramente num círculo virtuoso -, como os bois do excelente filme “Abril despedaçado” (coprodução Brasil-França-Suiça, de 2001, com Rodrigo Santoro e direção de Walter Sales) que caminham mecanicamente em torno da bolandeira (um tipo de moenda), mesmo sem a canga que os atrela quase diariamente ao mecanismo.
O filme nos remete à tirania dos hábitos e costumes, e ao esforço e alto preço em romper com essa tirania. Ato de libertação e remissão indispensável. 'Abril despedaçado' é uma bela metáfora da vida humana, e um daqueles filmes baseados em livro que nos permite tornar o local em universal.
Os anos se sucedem e nos vemos tiranizados pelas mesmas coisas, pelos mesmos costumes, leis, dogmas e hábitos que infelicitam, muitas vezes sem forças suficientes ou condições de mudar o rumo dessas coisas. No filme citado, é a morte sacrificial do irmão mais novo que liberta o irmão mais velho, que evita o sertão e toma uma nova estrada, literalmente, em direção ao mar, símbolo da vida em abundância.
Criamos uma sociedade hipócrita, sádica e cínica. A bolandeira com sua canga presa ao pescoço de cada um - mesmo que já não a sintamos mais - nos faz repetir as mesmas coisas, contrariando promessas e desejos de mudanças. O esforço necessário para romper com o mecanismo tirânico é demasiado para a maioria das pessoas, embora tenha que ser feito, … algum dia.
O moralismo vigente, seja social, político ou religioso, funciona como mecanismo de controle social e individual. Um jugo nada suave e um fardo nada leve ! As condições da vida atual, com ou sem passagem simbólica dos tempos, mantém o distanciamento da própria realidade e da própria realização. As interdições para o reconhecimento e experimentação dos próprios sentimentos são diversas e os apelos – vários - desfocam e desviam, auxiliados por essa neblina que nos impede de antever o futuro com um mínimo de segurança.