Para falar de gente, de seres humanos, do bicho humano perfectível, apesar de tudo. Do Animal sapiens, mas a partir de agora do "Homo spiritualis", com sua fé e religiosidade muitas vezes confusa, gerando preconceitos, discriminações.

16
Jul 11

Antigos e Novos Impérios 

"Vi, deitadas em suas mortalhas de pedra ou de areia, as cidades famosas da antigüidade: Cartago, em brancos promontórios, as cidades gregas da Sicília, os arrabaldes de Roma, com os aquedutos partidos e os túmulos abertos, as necrópoles que dormem um sono de vinte séculos, debaixo das cinzas do Vesúvio. Vi os últimos vestígios das cidades longínquas, outrora formigueiros humanos, hoje ruínas desertas, que o sol do Oriente calcina com suas carícias ardentes.

Evoquei as multidões que se agitaram e viveram nesses lugares: vi-as desfilar, diante do meu pensamento, com as paixões que as consumiram, com seus ódios, seus amores e suas ambições desvanecidas, com seus triunfos e reveses – fumaças dissipadas pelo sopro dos tempos. Vi os soberanos, chefes de impérios, tiranos ou heróis, cujos nomes foram celebrados pelos fastos da História, mas que o futuro esquecerá.

Passavam como sombras efêmeras, como espectros truanescos que a glória embriaga uma hora, e que o túmulo chama, recebe e devora. E disse comigo mesmo: Eis em que se transformam os grandes povos, as capitais gigantes – algumas pedras amontoadas, colinas silenciosas, sepulturas sombreadas por mirrados vegetais, em cujos ramos o vento da noite murmura suas queixas."

(DENIS, Léon. Depois da morte, 18. ed. Rio de Janeiro: FEB, Introdução.)

 

 

 

Esta impressionante descrição feita por Léon Denis acerca da sucessão dos séculos com suas civilizações, retrata muito bem os tempos atuais. Governantes igualmente arrogantes, países em nada diferentes daqueles impérios sanguinários do passado apesar da polidez diplomática, cujos registros nossas ingênuas crianças estudam nas aulas de História, sem perceberem a estupidez do halo heróico dado aos impérios guerreiros do passado com seus tiranos e falsos heróis.

A prisão emblemática de Saddam Husseim ecoa pelo mundo qual vitória definitiva do Bem contra o Mal. O rebanho humano, manipulado e manietado pelas grandes corporações da informação, crê – momentaneamente – que a paz vai finalmente reinar no planeta. Não percebe que a violência está dentro de cada um. Que a paz igualmente deve começar em cada um e não de cima para baixo, por decretos ou como conseqüência de preconceitos, discriminações ou perseguições a povos ou grupos sociais.

O terrorismo, visto como atitude extrema de radicais de qualquer matiz, não deixará de acontecer pelo mundo. O terrorismo de estado está cada vez mais presente e causa verdadeiras catástrofes sociais através da extorsão legalizada que inviabiliza a realização dos pequenos sonhos individuais. O mundo cada vez mais se parece com aquela prisão a céu aberto antevista pelos filósofos. Democracia, liberdade e justiça são palavras cada vez mais desprovidas de sentido, pois aplicam-se a interesses e conveniências de momento.

Nunca a desfaçatez e as mentiras consentidas foram tão populares. Mentir não é errado quando se visa um fim útil, dizem alguns governantes. Ou seja, os fins justificam os meios. O que se vê pelo mundo é um novo holocausto, um holocausto moral, onde cada vez mais diminuem as possibilidades de fuga do atual sistema opressivo e repressor. Afinal, remendo novo em tecido velho só aumenta o buraco.

A influência dos Estados Unidos sobre o mundo, em especial a política internacional adotada após o atentado de 11 de setembro de 2001, sinaliza o surgimento de uma nova "guerra fria", um novo anti-semitismo ou, pelo menos, a criação de forte animosidade entre ocidentais e muçulmanos, tendo os EUA à frente como xerife do planeta.

A vida perdoa os simples mas não os ingênuos. Estes pagarão um alto preço pela ignorância escolhida como meio de vida. A alienação conduz à vulnerabilidade diante das constantes manipulações políticas, permitindo amplo espaço de manobra para os espertalhões e para os grandes e pequenos tiranos.

Conta-se que certo rei provocou os sábios de seu reino para que criassem uma frase que se aplicasse a todos os momentos e circunstâncias, a todos os lugares e a todas as épocas. Depois de muito refletir, os sábios disseram: "também isso passará". De fato, como bem lembra Léon Denis, os impérios de ontem e de hoje não são eternos. Cairão por si mesmos. Seja pelo gigantismo causado pela própria expansão, seja pelas fragilidades engendradas pelo misto de individualismo e megalomania de uns ou de todos. Parece que a auto-implosão é questão de tempo.

A humanidade sofre com a atual transição. Percebe-se que a atual civilização, decrépita e enferrujada, não tem superestrutura moral para se sustentar, por isso apela para a violência, num claro retrocesso histórico e plena implantação da barbárie.

A substituição do tecnocentrismo por um novo antropocentrismo talvez seja a saída mais próxima para se evitar catástrofes sociais ainda mais graves. A dor e os sofrimentos coletivos potencializam as mudanças estruturais que já se delineiam, apesar do crescimento da intolerância e do recrudescimento do espírito da inquisição, dos fundamentalismos e da cultura do consumo que não trazem felicidade nem paz duradoura.

Paulo S.

publicado por animalsapiens às 12:59
tags:

Composição: Chico Buarque

Amou daquela vez como se fosse a última
Beijou sua mulher como se fosse a última
E cada filho seu como se fosse o único
E atravessou a rua com seu passo tímido
Subiu a construção como se fosse máquina
Ergueu no patamar quatro paredes sólidas
Tijolo com tijolo num desenho mágico
Seus olhos embotados de cimento e lágrima
Sentou pra descansar como se fosse sábado
Comeu feijão com arroz como se fosse um príncipe
Bebeu e soluçou como se fosse um náufrago
Dançou e gargalhou como se ouvisse música
E tropeçou no céu como se fosse um bêbado
E flutuou no ar como se fosse um pássaro
E se acabou no chão feito um pacote flácido
Agonizou no meio do passeio público
Morreu na contramão atrapalhando o tráfego

Amou daquela vez como se fosse o último
Beijou sua mulher como se fosse a única
E cada filho seu como se fosse o pródigo
E atravessou a rua com seu passo bêbado
Subiu a construção como se fosse sólido
Ergueu no patamar quatro paredes mágicas
Tijolo com tijolo num desenho lógico
Seus olhos embotados de cimento e tráfego
Sentou pra descansar como se fosse um príncipe
Comeu feijão com arroz como se fosse o máximo
Bebeu e soluçou como se fosse máquina
Dançou e gargalhou como se fosse o próximo
E tropeçou no céu como se ouvisse música
E flutuou no ar como se fosse sábado
E se acabou no chão feito um pacote tímido
Agonizou no meio do passeio náufrago
Morreu na contramão atrapalhando o público

Amou daquela vez como se fosse máquina
Beijou sua mulher como se fosse lógico
Ergueu no patamar quatro paredes flácidas
Sentou pra descansar como se fosse um pássaro
E flutuou no ar como se fosse um príncipe
E se acabou no chão feito um pacote bêbado
Morreu na contra-mão atrapalhando o sábado

Por esse pão pra comer, por esse chão prá dormir
A certidão pra nascer e a concessão pra sorrir
Por me deixar respirar, por me deixar existir,
Deus lhe pague
Pela cachaça de graça que a gente tem que engolir
Pela fumaça e a desgraça, que a gente tem que tossir
Pelos andaimes pingentes que a gente tem que cair,
Deus lhe pague
Pela mulher carpideira pra nos louvar e cuspir
E pelas moscas bicheiras a nos beijar e cobrir
E pela paz derradeira que enfim vai nos redimir,
Deus lhe pague

publicado por animalsapiens às 12:25
tags:

UM PEQUENO FRAGMENTO DO DISCURSO QUE SARAMAGO PROFERIU QUANDO RECEBEU O PREMIO NOBEL DE LITERATURA NA SUéCIA. É UMA VERDADEIRA DECLARAçãO DE RESPEITO E AMOR à VIDA.

JOSé SARAMAGO

INTRODUçãO DO DISCURSO PERANTE A REAL ACADEMIA SUECA:

DE COMO A PERSONAGEM FOI MESTRE E O AUTOR SEU APRENDIZ

/POR JOSÉ SARAMAGO /
SEGUNDA-FEIRA, 7 DE DEZEMBRO DE 1998

O homem mais sábio que conheci em toda a minha vida não sabia ler nem escrever. Às quatro da madrugada, quando a promessa de um novo dia ainda vinha em terras de França, levantava-se da enxerga e saía para o campo, levando ao pasto a meia dúzia de porcas de cuja fertilidade se alimentavam ele e a mulher. Viviam desta escassez os meus avós maternos, da pequena criação de porcos que, depois do desmame, eram vendidos aos vizinhos da aldeia. Azinhaga de seu nome, na província do Ribatejo.

Chamavam-se Jerónimo Melrinho e Josefa Caixinha esses avós, e eram analfabetos um e outro. No Inverno, quando o frio da noite apertava ao ponto de a água dos cântaros gelar dentro da casa, iam buscar às pocilgas os bácoros mais débeis e levavam-nos para a sua cama. Debaixo das mantas grosseiras, o calor dos humanos livrava os animaizinhos do enregelamento e salvava-os de uma morte certa.

Ainda que fossem gente de bom carácter, não era por primores de alma compassiva que os dois velhos assim procediam: o que os preocupava, sem sentimentalismos nem retóricas, era proteger o seu ganha-pão, com a naturalidade de quem, para manter a vida, não aprendeu a pensar mais do que o indispensável. Ajudei muitas vezes este meu avô Jerónimo nas suas andanças de pastor, cavei muitas vezes a terra do quintal anexo à casa e cortei lenha para o lume, muitas vezes, dando voltas e voltas à grande roda de ferro que accionava a bomba, fiz subir a água do poço comunitário e a transportei ao ombro, muitas vezes, às escondidas dos guardas das searas, fui com a minha avó, também pela madrugada, munidos de ancinho, panal e corda, a recolher nos restolhos a palha solta que depois haveria de servir para a cama do gado. E algumas vezes, em noites quentes de Verão, depois da ceia, meu avô me disse: "José, hoje vamos dormir os dois debaixo da figueira". Havia outras duas figueiras, mas aquela, certamente por ser a maior, por ser a mais antiga, por ser a de sempre, era, para toda as pessoas da casa, a figueira. Mais ou menos por antonomásia, palavra erudita que só muitos anos depois viria a conhecer e a saber o que significava... No meio da paz nocturna, entre os ramos altos da árvore, uma estrela aparecia-me, e depois, lentamente, escondia-se por trás de uma folha, e, olhando eu noutra direcção, tal como um rio correndo em silêncio pelo céu côncavo, surgia a claridade opalescente da Via Láctea, o Caminho de Santiago, como ainda lhe chamávamos na aldeia. Enquanto o sono não chegava, a noite povoava-se com as histórias e os casos que o meu avô ia contando: lendas, aparições, assombros, episódios singulares, mortes antigas, zaragatas de pau e pedra, palavras de antepassados, um incansável rumor de memórias que me mantinha desperto, ao mesmo tempo que suavemente me acalentava. Nunca pude saber se ele se calava quando se apercebia de que eu tinha adormecido, ou se continuava a falar para não deixar em meio a resposta à pergunta que invariavelmente lhe fazia nas pausas mais demoradas que ele calculadamente metia no relato: "E depois?". Talvez repetisse as histórias para si próprio, quer fosse para não as esquecer, quer fosse para as enriquecer com peripécias novas.

Naquela idade minha e naquele tempo de nós todos, nem será preciso dizer que eu imaginava que o meu avô Jerónimo era senhor de toda a ciência do mundo. Quando, à primeira luz da manhã, o canto dos pássaros me despertava, ele já não estava ali, tinha saído para o campo com os seus animais, deixando-me a dormir. Então
levantava-me, dobrava a manta e, descalço (na aldeia andei sempre descalço até aos 14 anos), ainda com palhas agarradas ao cabelo, passava da parte cultivada do quintal para a outra onde se encontravam as pocilgas, ao lado da casa. Minha avó, já a pé antes do meu avô, punha-me na frente uma grande tigela de café com pedaços de pão e perguntava-me se tinha dormido bem. Se eu lhe contava algum mau sonho nascido das histórias do avô, ela sempre me tranqüilizava: "Não faças caso, em sonhos não há firmeza". Pensava então que a minha avó, embora fosse também uma mulher muito sábia, não alcançava as alturas do meu avô, esse que, deitado debaixo da figueira, tendo ao lado o neto José, era capaz de pôr o universo em movimento apenas com duas palavras. Foi só muitos anos depois, quando o meu avô já se tinha ido deste mundo e eu era um homem feito, que vim a compreender que a avó, afinal, também acreditava em sonhos.

Outra coisa não poderia significar que, estando ela sentada, uma noite, à porta da sua pobre casa, onde então vivia sozinha, a olhar as estrelas maiores e menores por cima da sua cabeça, tivesse dito estas palavras: "O mundo é tão bonito, e eu tenho tanta pena de morrer". Não disse medo de morrer, disse pena de morrer, como se a vida de pesado e contínuo trabalho que tinha sido a sua estivesse, naquele momento quase final, a receber a graça de uma suprema e derradeira despedida, a consolação da beleza revelada. Estava sentada à porta de uma casa como não creio que tenha havido alguma outra no mundo porque nela viveu gente capaz de dormir com porcos como se fossem os seus próprias filhos, gente que tinha pena de ir-se da vida só porque o mundo era bonito, gente, e este foi o meu avô Jerónimo, pastor e contador de histórias, que, ao pressentir que a morte o vinha buscar, foi despedir-se das árvores do seu quintal, uma por uma, abraçando-se a elas e chorando porque sabia que não as tornaria a ver.

Muitos anos depois, escrevendo pela primeira vez sobre este meu avô Jerónimo e esta minha avó Josefa (faltou-me dizer que ela tinha sido, não dizer de quantos a conheceram quando rapariga, de uma formosura invulgar), tive consciência de que estava a transformar as pessoas comuns que eles haviam sido em personagens literárias e que essa era, provavelmente, a maneira de não os esquecer, desenhando e tornando a desenhar os seus rostos com o lápis sempre cambiante da recordação, colorindo e iluminando a monotonia de um quotidiano baço e sem horizontes, como quem vai recriando, por cima do instável mapa da memória, a irrealidade sobrenatural do país em que decidiu passar a viver. A mesma atitude de espírito que, depois de haver evocado a fascinante e enigmática figura de um certo bisavô berbere, me levaria a descrever mais ou menos nestes termos um velho retrato (hoje já com quase oitenta anos) onde os meus pais aparecem: "Estão os dois de pé, belos e jovens, de frente para o fotógrafo, mostrando no rosto uma expressão de solene gravidade que é talvez temor diante da câmara, no instante em que a objectiva vai fixar, de um e de outro, a imagem que nunca mais tornarão a ter, porque o dia seguinte será implacavelmente outro dia... Minha mãe apoia o cotovelo direito numa alta coluna e segura na mão esquerda, caída ao longo do corpo, uma flor. Meu pai passa o braço por trás das costas de minha mãe e a sua mão calosa aparece sobre o ombro dela como uma asa. Ambos pisam acanhados um tapete de ramagens. A tela que serve de fundo postiço ao retrato mostra umas difusas e incongruentes arquiteturas neoclássicas". E terminava: "Um dia tinha de chegar em que contaria estas coisas. Nada disto tem importância, a não ser para mim. Um avô berbere, vindo do Norte de África, um outro avô pastor de porcos, uma avó maravilhosamente bela, uns pais graves e formosos, uma flor num retrato - que outra genealogia pode importar-me? a que melhor árvore me encontraria?"

José Saramago  

-------------------------
publicado por animalsapiens às 08:20

Julho 2011
Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab

1
2

3
4
5
6
7
8
9






Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

subscrever feeds
mais sobre mim
pesquisar
 
links
blogs SAPO